"Se queres sentir a felicidade de amar, esquece a tua alma."
Eu sabia que estava esquecendo algo por esses dias. Acontece que esqueci de mandar meu conto para o concurso que o Jornal Cruzeiro do Sul está fazendo. Consiste nos leitores enviarem algum conto próprio que jamais tenha sido publicado, até mesmo em páginas da Internet, onde os 20 melhores (se não me engano é esse o número) seriam escolhidos para a produção de um livro com esses. O prazo de entrega ia até dia 5 desse mês, portanto, perdi.
Agora que não há mais porque eu esconder, o colocarei aqui.
Talvez tenha sido por isso mesmo que esqueci de enviar :P
De praxe, é um romance. Espero que gostem. Obrigado.
Eles
Eles cresceram juntos. Desde criança moravam perto, mas não foi apenas isso o que os tornou próximos demais. Ele tinha 7 anos quando a conheceu, não a admirando mais do que por ter uma nova amiga. Eram vizinhos de muro, mas logo se tornariam residentes no mesmo amor.
O tempo passou e a adolescência aflorou os sentidos de homem e mulher. Tornando-se grandes amigos, aos 12 anos ele não a mais via como uma simples amiga, afinal, Ela estava se tornando linda, de cabelos loiros e novos como a alva que vem toda manhã e de pele branca como a neve que Ele só via em pensamentos. Infelizmente, assim como a neve, ele só a admirava melhor nos sonhos incompletos, porque nunca conseguiu ser mais que seu amigo.
A Rua Constantinopla, de uma cidade onde nem os grandes mais sabem onde fica, foi palco de um dos maiores amores adolescente já visto em toda a história. Os nomes não se sabem, mas Ele e Ela foram amigos, que muito quiseram ser amantes, mas foram apenas amigos.
Ele também não passou despercebido aos olhos dela. Ele havia se tornado um rapaz bonito. Ficou alto, magro e elegante. O terno bem alinhado e a barba rala deram um charme ainda maior quando completou 18 anos. As meninas da cidade suspiravam por Ele, que galanteava com prazer, mas nunca deu amor a nenhuma das raparigas de lá. Apesar do charme empregado mesmo para o galanteio, não era para elas, e sim para Ela, que parecia gostar, mas nunca explicitar. Mesmo assim, eles andaram de mãos dadas muitas vezes, mesmo Ela dizendo que não era nada mais que amizade e que Ele era nada mais que um irmão de coração.
Eles se encontravam todos os dias, às vezes na casa dele, mas principalmente na dela. Iam para o sótão, pois era um lugar tranquilo e quieto e conversavam por horas e horas. Ela estava cada vez mais bonita, cada vez mais mulher, e Ele cada vez mais famoso entre as rodas das meninas da cidade. Numa de suas conversas, Ela disse com o desdém do ciúme: “Você está famoso. Realmente se tornou um rapaz bonito. Por que não namora alguma das nossas amigas? A Flávia, a Cláudia, a Heloisa... Todas querem fazer carinho nesse cabelo lambido.” Sem muita demora, ele derramou seu coração: “Meu amor não é de todas, somente da mulher que me faz sentir homem”. Com a cara cada vez mais fechada, Ela retornou: “Quem?” Sem pressa ele disse: “Aquela que me provoca, que sabe que eu a amo, que me chama de irmão, mas me dá a mão como se fossemos namorados.” Ele saiu logo após a fala.
Saiu por algumas horas. Voltou no dia seguinte. Encontrou-a rindo como nunca havia visto antes. Nunca a havia visto tão adornada como aquele dia. Parecia que ia para a festa de aniversário do Coronel. Surpreso, Ele perguntou: “Porque tamanha arrumação?” Ela disse com um sorriso da alva: “Porque hoje é o dia mais feliz da minha vida.” “Por quê?”, insistiu ele. “Porque me tornei mulher, porque um homem me ama”, disse ela correndo para seu quarto. Ele foi embora.
Depois desse dia as coisas mudaram. Fizeram promessas de amor, logo, de loucos, mas nunca afirmaram o compromisso que tanto desejavam. Ela nunca foi dele, e Ele nunca foi dela. Andavam sempre juntos, encantando o mundo à sua volta, com o amor que contagiava até as flores murchas, até as velhas senhoras que nem mais se lembravam dos falecidos maridos.
O amor foi crescendo cada vez mais. Os pais deles e a mãe dela gostavam daquilo que parecia ser um futuro casamento. As duas famílias viviam sempre juntas. Não seria de admirar que aquela amizade tão próxima se tornasse mesmo num casamento bem sucedido. Contudo, o pai dela, dono de uma fábrica de chapéus, estava quase falido. Afundado em papéis de dívidas, ele também se afundava nas lágrimas. A saída parecia ser única: juntar-se com outro empresário mais sucedido, na parceria que salvaria sua vida, nem que destruísse a de alguém. Foi mesmo o que aconteceu.
Numa manhã de domingo, o pai maldito e a filha foram até a casa do que alguns contam ser Bento Arfazam, um rico e bem sucedido empresário da época. Era dono de uma fábrica de sapatos que queria expandir seus negócios. Ele tinha um filho, que não se lembram o nome, mas, mesmo com o nome esquecido, lembra-se do crime cometido por pai e filho.
A oferta foi irrecusável, a junção – triste. O pai dela ofereceu-a como para noiva o filho de Bento. Irrevogavelmente, estava feito. A aliança de ouro nos negócios feita e a aliança de prata nos dedos dela eram as algemas de uma alma aflita.
Ele ficou surpreso quando recebeu a notícia. Seu chão havia sumido. Chorou por noites sem cessar. Seus olhos verdes tornaram-se cinzas, sua veste perdeu a cor, seu cabelo recebeu os ventos do desalento profundo e ficaram bagunçados como ninho dos pássaros que não mais cantavam na cidade. Ele foi reduzido a um torso, mesmo com membros literais, mas depois do que havia perdido, só lhe sobrara o peito que era tristeza total.
Os anos passaram. Ela se mudou para longe da Rua Constantinopla e da cidade que muitos não lembram. Fora morar numa mansão a quilômetros de distância dali. Fora mulher triste, porque residia no mesmo amor findado do amado exilado. Choraram mutuamente na distância que chegava a ser, algumas vezes, confortante para os olhos apaixonados de um amor que não se podia consolidar.
Cartas foram o que sobraram. Ele e Ela correspondiam-se. Ela pedia para esquecê-la, pois seria melhor para ambos. Mandava-o casar-se, vadiar, ir para a boemia. Ele não foi. Estranhamente, sua esperança reanimou. Ele achou que podia reverter a situação. Nada a prendia totalmente ao marido; nenhum compromisso a não ser o título de mulher de um homem que não amava, por estarem juntos por uma aliança egoísta que já estava feita, que estava consolidada, que havia mostrado resultado.
Ele penteou seus cabelos como antes, como há muito muitos não viam. Vestiu seu terno verde como seus olhos que não mais eram. A cartola foi à perfeição! A viagem era longa, os perigos seriam muitos, portanto, fez uma mala grande com tudo o que seria necessário e carregou seu revólver para caso de precisar. Beijou sua mãe e despediu-se. Pegou o trem na estação que costumava brincar com Ela quando criança, e partiu rumo ao endereço que vinha nas cartas enviadas pela amada impossível.
Chegou ao local alguns dias depois. A mansão era isolada. Não havia casas ao redor, nem uma cidade acolhedora. Era uma fazenda gigante, um latifúndio. Ficou abismado ao ver que ao fundo, no quintal macro, uma festa corria de felicidades mil. Ele adentrou o local com o peito estufado de homem destemido que era, pois não perderia nada, já haviam lhe tomado mesmo tudo.
Ficando hirto no espaço ocupado, fitou-a com os olhos que, de cinza, aos poucos foram retomando a cor da esperança que só ele tinha. Ela continuava linda. Na verdade, estava mais linda do que nunca: sorridente ainda como uma menina, mas já com corpo e feições de mulher completa. A saia rodada até o chão, branca com listras rosas era como se nem coubessem nos moldes humanos de beleza, devido a deusa que vestia-a. Apesar do sofrimento que havia passado anos atrás, Ela parecia estar feliz. Ria e conversava com os convidados de uma maneira como se uma dádiva houvesse lhe caído dos céus. Mas Ela parou no momento em que viu o amor que há tempos que não via.
Sem acreditar e de passos curtos, devido à paralisia momentânea dos membros do corpo diante de tamanha surpresa, ela caminhou em direção do seu antigo baluarte perfeito. “Como... Como pode...” Gaguejou Ela. “Não digas nada, mulher.” “Por que vieste até aqui?” Perguntou ela estupefata. “Para tomar de volta o que me arrancaram e levaram junto com meu coração e alma”, respondeu o exilado.
Eles correram para dentro da casa. Conversaram a respeito da loucura que Ele estava fazendo. Ele fez questão de contar toda a esperança resgatada de onde nem sabia exatamente. Contou de seus prantos, da amargura que a vida havia se tornado, das dores do peito triste, da falta de vida que a vida lhe proporcionara. Eles choraram, mas não podiam sequer se tocar, pois, a qualquer momento, alguém poderia adentrar a mansão. Ela também fez confissões como Ele nunca havia ouvido antes. “Minha viagem não foi em vão. Vou tirá-la daqui”, ludibriou-se.
Mas a notícia veio como mil facadas no peito que havia resgatado há pouco. “Tenho um filho de um ano. Não posso ir com você. Sou casada, sou mãe, sou mulher! Por mais que eu queira, o compromisso é das dores que assumi, da minha imagem e da minha moral!”
Então, definitivamente, Ele tornou-se inteiro cinza. Chorou lágrimas únicas que por dentro eram muitas. “Perdão por vir”, disse soluçando. “Posso ver o filho de seu?” “Claro” Ela respondeu.
Adentrou um quarto lindo, todo azul. Os brinquedos eram muitos: os mimos da criança culpada pela não possível volta de um amor trágico. O menino no berço era lindo. Loiro como nunca alguém vira antes. Assim como possuía a pele da mesma cor branca de sua mãe, seus cabelos também o eram - os cabelos que Ele havia afagado poucas vezes. Eram esses os mais invejados mimos do garoto que não tinha culpa alguma da culpa que tinha.
“Pegarei um copo d’água. Volto já”, disse Ela secando suas lágrimas. Ele, sem dizer nada, fechou e trancou a porta após a saída da mulher. Fitou com ódio o garoto que dormia como anjo nas nuvens. Não era mesmo mais que um anjo. Um anjo com culpa pesada; pesada, assim com as palavras proferidas ao garoto que não ouvia nada, a não serem os sonhos que se sonha um protótipo:
“Sabes tu o que me tiras agora, garoto? Tempo e esperança, pois vim de longe, nem que a distância seja de menos, mas tiras-me a mulher que nunca foi minha e que muito desejei. Tiras-me o sorriso, a beleza, o encanto de menino que tinha. Tiras-me o sorriso, a beleza e o encanto da mulher que escolhi desde menino para ser comigo o que não consigo ser por mim. Tiras-me tudo: a vida, o sorriso, a esperança, o peito, felicidade, harmonia, o eu que não é mais nada e o eu que nunca fui! És culpado pela culpa que nem sabes que tem parte, por tudo que és! Não há mais motivo para a vida. Se há um verdadeiro culpado, cortarei o mau pela raiz”, disse ele sacando a arma do cinto de couro. “Terminarei com a vida do culpado, sim, do verdadeiro, que não és tu, somente eu, por não ter consolidado o amor por que vivi; por ser quem sou.”
Ele caiu morto com seu suicídio. O culpado verdadeiro fora levado. Ele mesmo não perdeu nada, estava morto havia muito tempo.
Essa é a história de Ele e Ela, que muitos contam com dor no coração. Mas minha dor é especial, por ter dado Ela como pretexto egoísta para os negócios que tive. E agora, não me sobra muito, senão o tudo, que como sempre, já me é nada.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAntonio,
ResponderExcluirParabéns!
Seu blog está ótimo.